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Eu já fui um nada perdido em névoa. Um nada que era algo, mas que por não ter nome, não podia ser. Um sem nome que era todo medo, mas que era algo a mais do que o medo. E por não saber o que era, não podia chamar. Eu já fui alguém, quando preferia ser qualquer outra coisa que não ela. Que eu me vomitava em flores pra ver se me esvaziava de mim. Eu já fui você. Fui tanto você, que você não se era mais. E nem eu. E depois eu fui uma casa que eu não construí. Fui uma casa enorme com cômodos mal planejados como um labirinto. Eu fedia a mofo e flores que eu vomitei. Um dia derrubaram a casa que eu era e eu fui escombros. Me retiraram antes que eu pudesse ser algo além de um terreno baldio. De forças que eu tinha quando descobri pernas, eu fui andante. Andava à procura de mim, como se eu fosse me brilhar em algo. Fosse saber que era, quando encontrasse. Me construí num terreno à venda. Ainda casa. Planejada pra durar assim, imutável.  Fui laranja, de madeira, com teto de vidro pra ver o céu.

"gosto de observar o Vegas especialmente quando ele se cala"

Eu é que gosto de falar. Na verdade, acho que eu mais preciso, do que gosto. Sinto que se eu não falar, as palavras vão se acumular na minha garganta, no meu peito e no meu estômago. Uma mistura enorme de letras vão tomar conta do meu corpo e vão impedir que eu seja reconhecida. Eu nunca mais vou ser eu. Eu preciso falar do que eu sinto, do que eu vejo, do que eu sou. O tempo todo. Mas você, não. Você é no silêncio. Eu gosto de te observar no seu silêncio porque é por onde você diz. Eu costumava completar o silêncio do outro com as minhas próprias palavras, porque me angustiava aquele vazio do silêncio que não dizia nada. Mas eu não preciso dar sentido ao seu silêncio, porque é nele que você fala. Eu falo porque eu preciso falar e sempre acreditei que era o único jeito de dizer o que eu precisava que fosse dito. É bonito saber que você consegue dizer de outras maneiras.  Você me diz muita coisa quando vem o tempo todo. Você simplesmente vem e quando vem, você toca. Seu toque declama mo

Fim do mundo

Saí de casa para olhar o mundo enquanto ele acabava. Me sentindo culpada porque eu nasci durante o apocalipse, enquanto tantos outros seres morreram. O céu estava caindo em flores e as pessoas tiravam as máscaras para sentir o perfume. Ninguém queria mais morrer triste. Dos olhos de um recém nascido que não conhece o mundo, não senti nada, porque não sabia o que sentir. Mas no fim daquela fila eterna de gente viva, eu o vi. Foi quando meu olhar entrou em foco pela primeira vez nessa nova vida. E pelos meus olhos eu senti todas as sensações humanas. Quando ele sorriu, meus pulmões perderam a capacidade de me manterem viva, mas eu respirei olhando. E no olhar dele eu me descobri alguém. Eu vi o mundo acabando num céu azulzinho. Senti a grama verde nos meus pés pela primeira vez. Respirei os olhos dele em mim até quando eu não o via. Eu sabia que eu tinha nascido no fim do mundo, mas foi pelos olhos dele que eu pude passar a existir. Ele era tão não-eu quanto ele podia ser e, ainda assim,

meu aniversário mais estranho de todos

meia noite eu estava com a minha família. a família que eu escolhi e que me acolhe todos os dias como a pessoa que eu sou. que não mediu esforços para que minha virada de dia fosse especial e cheia de carinho. eles estavam ao meu lado, fazendo festa, comemorando o meu dia que é tão importante pra mim. acordei e não me sentia muito no meu dia. li e reli as declarações que eu recebi até agora, pra ver se caía minha ficha que eu estava no dia mais legal do ano pra mim. não caiu. ultimamente eu me pego agradecendo por ser tão feliz. por ser tão amada e admirada como eu sou. por ter tanto todos os dias. acho que estou no meu melhor momento e talvez todos os dias sejam os dias mais legais do ano. tudo isso porque eu internalizei a palavra que descobri ano passado como sendo minha preferida. "possível". e percebi que meu possível é TANTO. eu tenho tantos amigos, tantas pessoas que posso contar todos os dias. recebo tanto carinho, tantas palavras de olhos que me enxergam de uma forma
 Um dia eu me vi soterrada em responsabilidades. Responsabilidades que não eram minhas, mas que tavam se acumulando ali há muito tempo. Só deixei acumular porque achei que talvez elas fossem minhas, sim. Quem eu achava que era pra dizer que não eram? E as primeiras responsabilidades acabaram sendo bem cuidadas e acomodadas pertinho de mim. Porque era melhor do que ficar sozinha. Aí, toda vez que chegava uma responsabilidade nova ficava mais difícil de dizer que não era minha, já que todas as outras eram. Algumas delas chegavam com uma espécie de laço e eu até agradecia. Eram tantas, que passaram a me sufocar, mas eu nem percebia direito, porque já tava acostumada a viver respirando pouco ar. Eu nem sabia que os presentes eram, na verdade, responsabilidades. Eu esperava receber um presente sem saber direito o que era, e como não sabia, a responsabilidade vinha e eu acabava agradecendo. Quando a gente não sabe direito o que quer receber, a gente aceita o que chega com lacinho. E quando e

Jade e Blu

 Nosso porta retrato, no meu quarto, ficava junto com uma miniatura de plástico do casal de araras daquele filme "rio". Sabe, as araras azuis? Não sei por quê eu tinha eles aqui, mas coloquei pertinho porque tinha lido que as araras azuis tinham um amor só pra vida inteira. Pra mim, a gente era um casal de arara azul. E eu queria que você fosse não só o último amor da minha vida, mas o único amor da minha vida. Isso fez com que eu me envergonhasse até dos meus amores da infância. Todos os dias eu tentava me convencer que eu nunca tinha me apaixonado antes de você, que você era minha arara azul. Primeiro e único. É mentira, tenho que te dizer. Me apaixonei antes de você, sim. E depois de você também, algumas boas vezes. Mesmo assim, você continuou sendo primeiro e único em muitas e muitas coisas, mas eu demorei anos pra compreender isso. Hoje eu pesquisei pra ter certeza que as araras azuis tinham mesmo um só amor pra vida toda e li que, às vezes, nem com a morte do outro, ela

A caixa

 Lembra de uma caixa que você guardava as cartas que eu escrevia pra você e os presentes que eu te dava? Lembra que, quando acabou, você colocou lá as fotos, a aliança e tudo que tinha de mim à vista pelo seu quarto? Você lembra que me fez terminar por telefone porque não queria me encarar num momento em que a gente não fosse mais nós? E você lembra que pegou essa caixa cheia e mandou me entregarem porque você não suportava ficar olhando para aquelas lembranças? Eu lembro. Eu lembro o quanto eu fiquei puta da vida quando recebi aquela caixa e senti que você não queria mais nenhuma lembrança nossa. E eu lembro o quanto eu queria. O quanto eu guardei aquela caixa como um tesouro. Lembro que guardei fora da minha vista e pensei que, é claro que eu também não queria ver aquelas lembranças o tempo todo! Se fosse esse mesmo o problema, você podia ter só guardado escondido em algum cantinho, não precisava se livrar de tudo. Você lembra disso? Lembra que eu gritei com você ao telefone porque a